Originalmente publicado no CONJUR.

Está em pauta no Supremo Tribunal Federal uma disputa que merece a atenção de todos, no Recurso Extraordinário 946.648/SC, quanto à incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na importação de mercadorias ou bens industrializados no exterior, no qual será discutida a cobrança do IPI na revenda de produto importado na primeira saída da mercadoria do estabelecimento importador para circulação no território nacional.

A indústria nacional, afora todas as dificuldades que suporta do chamado “custo Brasil”, nos últimos tempos passou a sofrer grave concorrência com produtos importados, não apenas pelos reduzidos preços, mas em virtude de manejo de uma interpretação das regras do CTN e da legislação do IPI, cujo êxito se verifica em tributar o produto estrangeiro, quando do desembaraço aduaneiro, ou seja, com a base de cálculo apurada apenas com o valor da declaração de importação (DI), com afastamento da incidência na etapa seguinte, da revenda praticada pelo estabelecimento adquirente, sem somar à base de cálculo o preço da mercadoria com a respectiva margem de valor agregado, o que logicamente é muito superior àquele declarado no desembaraço aduaneiro.

Ressalte-se que o IPI-Importação é devido em razão da entrada de produtos de origem estrangeira em território nacional e, quando houver revenda, deve ser cobrado em duas fases: no desembaraço aduaneiro (i) e na saída do estabelecimento importador (ii), por equiparação à etapa de tributação do estabelecimento industrial.

Importante recordar que a matéria já foi decidida pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em recurso especial com efeito de repetitivo, para afirmar que incide o IPI no desembaraço aduaneiro e, se houver “revenda” ou ato equivalente de comercialização, igualmente deve incidir na saída do estabelecimento revendedor, por força do artigo 51, II, do CTN, pela necessária equiparação com estabelecimentos industriais, para colher a necessária agregação de valor que este promove.

A ementa do EREsp 1.403.532, do STJ ficou a seguinte tese jurídica:

“Seja pela combinação dos artigos 46, II e 51, parágrafo único do CTN — que compõem o fato gerador, seja pela combinação do art. 51, II, do CTN, art. 4º, I, da Lei n. 4.502⁄1964, art. 79 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001 e art. 13 da Lei n. 11.281⁄2006 — que definem a sujeição passiva, nenhum deles até então afastados por inconstitucionalidade, os produtos importados estão sujeitos a uma nova incidência do IPI quando de sua saída do estabelecimento importador na operação de revenda, mesmo que não tenham sofrido industrialização no Brasil”.

Deveras, não se está a falar de tributação da revenda no mercado interno, após o processo de industrialização nacional, quando então ter-se-ia realmente uma hipótese de dupla tributação. No caso do produto importado, a “revenda” presta-se para destinar os produtos ao consumo no mercado, após a nacionalização.

Como a Constituição confere à lei complementar dispor sobre “contribuintes” dos impostos, no artigo 146, III, “a”, é inequívoco que o CTN é a única fonte que cumpre esta função no direito positivo, dado que a Constituição não trouxe nenhuma regra específica sobre sujeição passiva do IPI, diferentemente do ICMS.

De fato, a sujeição passiva do IPI-Importação nunca foi prevista no texto constitucional, mas exclusivamente em normas infraconstitucionais. A matéria, portanto, é infraconstitucional e já se esgotou por completo no exame do egrégio STJ. Assim foram os entendimentos exarados em mais de 10 decisões unânimes de turmas do STF e quase 50 outras de caráter monocrático dos ministros do STF.

No mérito, este exame não pode desbordar daquilo que orienta a técnica tributária mais criteriosa, ao amparo de exame exclusivamente jurídico.

De plano, não se deve confundir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) com o Imposto de Importação (II). Este, sim, tem sua hipótese de incidência reservada unicamente ao “desembaraço aduaneiro” de mercadoria proveniente do exterior. Diferentemente, ao IPI interessa alcançar a etapa que permita a equivalência com a “industrialização”, do mesmo modo que o ICMS deve colher a operação com “circulação da mercadoria” até o consumo final. Em ambos, porém, o fluxo não cumulativo tem origem com o desembaraço aduaneiro, para efeitos de geração de créditos.

Na importação, o IPI incide ao tempo do desembaraço aduaneiro. Contudo, a partir desta fase de “nacionalização”, a mercadoria pode tomar diferentes destinações. Dentre outras, (i) pode seguir diretamente para consumo final, sem ingressar na cadeia de comércio. Assim, o IPI esgota-se no despacho aduaneiro.

Afora isso, (ii) a mercadoria pode destinar-se a compor novo processo produtivo, como matéria-prima, ou mesmo sofrer qualquer processo de “industrialização, na forma do parágrafo único do artigo 46 do CTN. Neste, não se discute que se tenha a incidência do IPI sobre o produto final, com a tomada do crédito do IPI-importação da etapa do desembaraço aduaneiro.

E, entre uma e outra, temos o caso da iii) “revenda” do produto importado, quando este não segue direto para consumo (importação direta pelo consumidor), e tampouco converte-se em matéria-prima ou produto intermediário, como etapa de industrialização.

De nossa parte, estamos convencidos de que as hipóteses de incidência do artigo 46 e contribuintes do artigo 51 do CTN não trazem uma lista excludente. São etapas que podem ou não estar conjugadas, segundo a destinação da mercadoria.

Deveras, ao tempo que a mercadoria seja destinada a revenda (artigo 46, II do CTN), com a entrada no “estabelecimento”, este deverá ser equiparado a industrial (artigo 51, II), pois será esta fase aquela assumida como equivalente à incidência do IPI no mercado interno. Daí ser necessária a apuração das margens de valor agregado para destinar o produto importado para consumo, com a devida “equiparação” a estabelecimento industrial. Por conseguinte, compensado o crédito do desembaraço aduaneiro, não há que se falar em qualquer espécie de bitributação e quejandos.

O artigo 51, II, do CTN, é claro ao dizer que o sujeito passivo do IPI será “o estabelecimento industrial ou quem a lei a eles equiparar”. No caso específico, na legislação são admitidas formas de equiparação para fins de incidência do IPI sobre operações realizadas com produtos industrializados.

Na verdade, o CTN apenas deu continuidade à legislação em vigor que já trazia a hipótese de incidência do IPI sobre operação com produto de origem estrangeira (IPI-Importação), com equiparação à operação com produto de origem nacional (IPI-Industrialização). Senão, vejamos.

Com a materialidade restrita ao “consumo de mercadorias” após a Constituição de 1946, a Lei 4.502, 30/11/1964, instituidora do Imposto de Consumo, dispôs que aquele imposto de âmbito federal de consumo de mercadorias, seria limitado a produtos industrializados e teria duas hipóteses de incidência a saber: sobre produtos de origem estrangeira (i) e sobre produtos de origem nacional (ii). Eis o seu texto:

“Art . 1º O Impôsto de Consumo incide sôbre os produtos industrializados compreendidos na Tabela anexa.

Art. 2º Constitui fato gerador do impôsto:

I – quanto aos produtos de procedência estrangeira o respectivo desembaraço aduaneiro;

II – quanto aos de produção nacional, a saída do respectivo estabelecimento produtor”.

A seguir, nos parágrafos daquele artigo 2º, o legislador ordinário explicitou as condições da exigência, no alcance do conceito de industrialização e de estabelecimento produtor, para conferir as respectivas equiparações:

“§ 1º Quando a industrialização se der no próprio local de consumo ou de utilização do produto, fora de estabelecimento produtor, o fato gerador considerar-se-á ocorrido no momento em que ficar concluída a operação industrial.

§ 2º O impôsto é devido sejam quais forem as finalidades a que se destine o produto ou o título jurídico a que se faça a importação ou de que decorra a saída do estabelecimento produtor.

Art. 3º Considera-se estabelecimento produtor todo aquêle que industrializar produtos sujeitos ao impôsto.

Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo, considera-se industrialização qualquer operação de que resulte alteração da natureza, funcionamento, utilização, acabamento ou apresentação do produto, salvo: (…)”.

E, quanto às regras de “equiparação”, viam-se presentes as seguintes:

“Art. 4º Equiparam-se a estabelecimento produtor, para todos os efeitos desta Lei:

I – os importadores e os arrematantes de produtos de procedência estrangeira”.

Desse histórico, verifica-se que, não obstante nosso ordenamento sempre ter previsto a cobrança do Imposto de Importação, o IPI incide também sobre a importação de produtos industrializados de origem estrangeira, qual seja, durante fase imediatamente relacionada à importação (IPI-Importação), em paralelo com a incidência sobre os produtos industrializados de origem nacional na fase da industrialização (IPI-Industrialização) — apesar de a materialidade do IPI-Importação nunca ter sido objeto de texto de hierarquia constitucional, mas tão somente de veículos infraconstitucionais.

Deveras, o artigo 2º, II, da Lei 4.502/1964 limitou a saída do estabelecimento produtor (como tempo de ocorrência do fato gerador do IPI) às operações com produto de origem nacional, in verbis:

“Art. 2º Constitui fato gerador do impôsto:

I – quanto aos produtos de procedência estrangeira o respectivo desembaraço aduaneiro;

II – quanto aos de produção nacional, a saída do respectivo estabelecimento produtor” (n.g.).

O Código Tributário Nacional, em seu artigo 46, II, porém, não limitou a saída do estabelecimento produtor (como tempo de ocorrência do fato gerador do IPI), no caso de “produção nacional”, como fazia a Lei 4.502/1964, a saber:

“Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:

I – o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;

II – a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51” (n.g.);

Logo, a partir da entrada em vigor do Código Tributário Nacional, afasta-se a limitação do inciso II do artigo 2º da Lei 4.502/1964 (aos produtos de “produção nacional”), pelo inciso II do artigo 46 do CTN, de forma que o IPI poderia incidir também nas duas hipóteses, quais sejam, no desembaraço aduaneiro e na saída do estabelecimento importador, por equiparação com o estabelecimento industrial.

Em conclusão, para garantir equivalência de tributação no preço do produto no mercado interno, é necessária a incidência do IPI tanto no desembaraço aduaneiro (artigo 46, I e II e artigo 51, I do CTN) quanto na etapa de saída do estabelecimento de “revenda” (com toda a margem agregada de preço dirigido ao consumo, inclusive margem de lucro do estabelecimento), com direito à tomada de crédito da operação precedente.

Um estabelecimento não industrial, que importa produtos industrializados, por equiparação, torna-se sujeito passivo do IPI–importação, como medida de isonomia, para conferir ao produto importado o mesmo tratamento dado ao nacional. Eis a máxima eficácia do regime de tributação no destino do comércio internacional, bem como aquele do princípio de tratamento nacional, a garantir ao produto importante tratamento equivalente com os concorrentes do mercado de destino (GATT e OMC).

Pelo princípio da isonomia impõe-se a exigência do IPI na importação, ainda que o sujeito passivo não realize uma operação de industrialização, mas adquira produtos industrializados no exterior. E, por isso, justifica-se a equiparação de estabelecimentos comerciais a industriais, para identificação da correta e justa base de cálculo do IPI-Importação, quando ocorrido seu fato tributário, com a agregação de valor decorrente das operações de destinação ao consumo no mercado interno.

Por todos esses motivos, deve-se separar com clareza as hipóteses de incidência do IPI nas operações com produtos de origem estrangeira, pela inteligência dos artigo 46, I, e 51, I do CTN (i), cuja industrialização não ocorre no território nacional, o que motiva a necessária tributação em duas etapas: 1) na oportunidade do desembaraço aduaneiro; e, quando houver destinação para revenda, com a devida tomada de crédito relativo à operação anterior, 2) na saída do estabelecimento adquirente, mediante equiparação com estabelecimento industrial, na forma dos artigos 46, II, e 51, II, do CTN. Como se pode verificar, a questão nada tem de natureza constitucional.

Sem dúvidas, esta será a única solução coerente com o ordenamento jurídico em vigor e pela qual todos ganharão: a indústria, pelo equilíbrio na competitividade e na redução de diferenças de preços com produtos importados; o comércio, atacadista ou varejista, pois virá resolvido o desequilíbrio de preços entre produtos nacionais e importados, o que levará a melhor concorrência; e a sociedade, com abertura de mais empregos, retomada de novas indústrias mais competitivas, aumento de arrecadação de tributos (em virtude da base de cálculo real) e manutenção dos preços no consumo.