Originalmente publicado no CONJUR.

O Direito Tributário da América Latina ganhou, recentemente, um importante documento para a proteção dos direitos dos contribuintes nas relações tributárias. Trata-se da “Carta de Derechos del Contribuyente para los Países Miembros del Instituto Latinoamericano de Derecho Tributario (CDC-ILADT)”, [1] aprovada nas recentes XXX Jornadas, em Montevidéu, no Uruguai. Mesmo que não tenha eficácia vinculante, oferece uma pauta relevante de direitos e garantias comuns ao Direito Tributário contemporâneo.

As relações jurídicas internacionalizam-se em velocidade jamais imaginada. Não é diferente com as relações tributárias. Daí a crescente importância de determinar critérios jurídicos uniformes para prover o mesmo grau de proteção e limites de civilidade fiscal. E este tem sido o papel do Direito Tributário Comparado.

A CDC-ILADT foi elaborada a partir dos trabalhos de comissão constituída nas XXVI Jornadas Latinoamericanas de Santiago de Compostela, em 2012, sob a presidência do Professor Cesar Garcia Novoa, da qual tive a honra de participar, ao lado de importantes professores, como José Osvaldo Casás, Pasquale Pistone, Fernando Serrano Antón e Humberto Medrano, e cujo conteúdo foi debatido nas Jornadas do México, Peru, Bolívia e Montevidéu.

Apesar da semelhança das bases de Civil Law que definem os sistemas normativos dos países latino-americanos, [2] constata-se uma relevante variação, país a país, dos textos constitucionais, bem como das leis, códigos e jurisprudência que estatuem direitos ou garantias dos contribuintes, [3] o que justifica a busca de determinação, a partir da doutrina, daqueles que são os atuais direitos dos contribuintes na criação, aplicação e cobrança do crédito tributário no sistema tributário do Século XXI. [4]

A Carta de Direitos dos Contribuintes é resultado de intensa comparação jurídica, na aferição dos princípios e garantias comuns, o que propicia aos legisladores e tribunais dos distintos países uma importante referência sobre como efetivar a proteção jurídica do erário, mas sem que isso signifique atropelar direitos fundamentais ou valores caros à hermenêutica que a técnica jurídica contemporânea considera como os mais representativos e que merecem aceitação e efetividade normativa da tributação.

Ao menos em matéria tributária, a “era dos princípios” vagos e indefinidos, delimitados apenas por um, igualmente aberto, teste de proporcionalidade, que a tudo parecia justificar ou servir à prevalência da decisão judicial, chegou ao fim. Revelou-se impossível um sistema tributário atuar com semelhante insegurança. No seu lugar, como manda a tradição jurídica dos ordenamentos jurídicos mais confiáveis, recupera-se a força da certeza jurídica, da confiança legítima, da previsibilidade e da tipologia objetiva dos direitos e deveres das partes da relação tributária.

É nesse contexto que a CDC-ILADT merece cuidadosa análise pela doutrina brasileira, mas, principalmente, para que o seu conteúdo sirva de orientação segura para o processo de reforma que o sistema tributário nacional está a exigir. Uma reforma que não se faz de uma única vez, mas que deve ser empreendida de modo dinâmico, em sucessivas camadas de mudanças, para oferecer regimes tributários atualizados e simplificados.

Como fonte normativa, a CDC-ILADT tem seus conteúdos colhidos em distintos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Consequentemente, muitas das suas disposições podem ser alegadas com a força destas convenções. Afora estas regras, outras têm nítido caráter de soft law, com direitos ou garantias frequentemente aceitos e compartilhados por instituições internacionais, como OCDE, ONU, União Europeia, Mercosul e equivalentes.

No Brasil, a chegada desta Carta de Direitos dos Contribuintes pode ser uma oportunidade para o aprimoramento das propostas de “código de defesa dos contribuintes”, em trâmite no Congresso Nacional. [5] Com eficácia de direito constitucional (nos casos de tratados de direitos humanos) ou de lei complementar (art. 146, I da CF), estas regras podem ter a preeminência necessária.

Materialmente, a Carta de Direitos dos Contribuintes considera todos os direitos ou garantias como âmbitos de proteção com “conteúdo substancial”, que pode ter a função de “direito fundamental”, “direito público subjetivo” ou “garantia”, aos quais o Estado tem o dever de tolerância ou de assegurar sua concretização em favor dos contribuintes.

Devido à maior proximidade entre as jurisdições para coibir práticas danosas de planejamentos tributários agressivos, a exemplo do BEPS, ou mesmo para controles, como no caso da intensificação das trocas internacionais de informações, aquelas dimensões de conteúdo dos direitos e garantias tornaram-se ainda mais relevantes para propiciar uma proteção dos contribuintes em escala global.

Dentre outros direitos e garantias presentes na CDC-ILADT, poderíamos citar alguns que julgamos relevantes ao direito interno brasileiro:

  • direito a que toda prestação patrimonial pública (de caráter compulsório), seja ou não tributária, somente seja estabelecida por lei.
  • direito a que as ficções legais e as presunções absolutas (iuris et de iure) só possam ser utilizadas em caráter extraordinário e excepcional, e na medida em que estejam expressamente contempladas na lei.
  • direito a que se preserve o equilíbrio entre as prerrogativas do Fisco para a determinação da dívida tributária e as garantias do contribuinte, assegurando plenamente sua participação nas atuações administrativas de fiscalização, verificação e determinação, como também na fundamentação dos expedientes para a aplicação de sanções, concebendo a relação jurídica tributaria como uma relação de direito, e não de poder.
  • direito de formular queixas e sugestões em relação ao funcionamento da Administração tributária. Estas queixas tramitarão, preferencialmente, em um órgão independente que terá o perfil de uma defensoria do contribuinte.
  • direito a uma boa Administração, de tal forma que toda pessoa tenha direito a que as instituições, órgãos e organismos de um Estado tratem seus assuntos de modo imparcial, equitativamente e dentro de um prazo razoável.
  • direito à tributação que tenha em conta a proteção dos direitos de propriedade de forma proporcional, atendendo aos requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. O interesse geral que limita o direito de propriedade deve sempre ser contemplado e apoiado por lei em cada caso específico.
  • direito de ser compensado de forma ágil pelos custos de fiança, seguros e garantias empregados para suspender a exigibilidade da cobrança de impostos ilegais, ou para evitar medidas cautelares por parte da Administração, e mesmo quando a exigência tenha sido imposta na via administrativa ou jurisdicional.
  • direito à plena recepção, inclusive legislativa, da responsabilidade do Estado por normas ou atos de conteúdo tributário. Este direito, necessariamente, inclui a correspondente responsabilidade patrimonial da Administração, quando sua ação gerar um dano qualificado que o indivíduo não tenha o dever de suportar.
  • direito a um processo público, sem atraso e com resolução em prazo razoável.
  • direito de conhecer o estado do processo ou dos procedimentos de que é parte ou tem um interesse legítimo, com acesso aos arquivos e aos documentos que o compõem.
  • direito a uma audiência, entendido como o direito de ser ouvido no procedimento administrativo antes da emissão de lançamento ou auto de infração e, quando apropriado, a uma fase específica do procedimento para apresentar alegações, documentos e provas dentro dos prazos previstos na lei, sendo tais alegações, documentos e provas incorporados ao procedimento.
  • direito à prova, fornecendo os vários meios de prova no procedimento de fiscalização ou de lançamento, com base no princípio da facilidade de prova. Este direito incluirá a possibilidade de fornecer provas para refutar as presunções legais relativas (iuris tantum), demonstrando a realidade do caso concreto ou que as presunções são inadequadas para ele e o direito à motivação das decisões de inadmissibilidade.
  • o direito de contestar as avaliações feitas pela Administração, incluindo a proposição de provas periciais com valor alternativo.
  • direito de não se autoincriminar, não fornecer provas coercitivas que o incrimine.
  • direito dos administradores e outros representantes dos contribuintes que só possam ser responsabilizados pelas obrigações fiscais se agiram com dolo ou culpa.
  • direito à inaplicabilidade de critérios interpretativos a priori, tanto a favor da Administração, quanto do contribuinte.
  • direito a que as ações da Administração que se referem a aspectos parciais do fato tributável interrompam a prescrição apenas em relação àqueles aspectos (prescrição parcial).
  • direito de prever as conseqüências de suas ações e a tipicidade sancionadora.
  • direito a que as atividades do Fisco sejam realizadas sem atrasos, exigências ou esperas desnecessárias, e para que os procedimentos sejam desenvolvidos em um prazo razoável. Todos os processos tributários devem ter um prazo máximo legalmente fixado. Em caso de descumprimento, a expiração do procedimento deve ser legalmente prevista.
  • direito à inexistência de presunções absolutas de culpa ou fraude (iuris et de iure) no campo do direito tributário sancionatório, aceitando-se, excepcionalmente, presunções relativas (iuris tantum) que admitem prova em contrário do contribuinte.
  • direito a que a responsabilidade por infrações fiscais seja pessoal e não objetiva
  • direito a que, nos termos da legislação interna, sejam permitidos meios alternativos de resolução de conflitos, especialmente, a arbitragem. No caso de a arbitragem ser admissível para a solução de controvérsias entre Estados parte de um Acordo de Dupla Tributação, deve ser assegurada a possibilidade de o contribuinte ter capacidade para iniciar o procedimento (amigável).
  • direito de provar que as informações utilizadas em países terceiros foram obtidas por meio dos canais previstos para o intercâmbio automático ou troca de informações prévias. A informação obtida deve ser declarada nula e sem efeito quando se suponha a violação da ordem jurídica por pessoal a serviço da Administração ou por particulares.

São apenas alguns exemplos. Como se pode verificar dessa breve amostragem, diversas regras poderiam contribuir para o aprimoramento do modelo tributário brasileiro.

Nos tempos atuais de Fisco Global, a proteção dos contribuintes não pode mais ficar restrita às fronteiras da soberania de cada Estado, segundo suas constituições e leis internas. Daí a utilidade de projeção de um conjunto de regras que possa ser reclamado com eficácia transnacional, se não com eficácia de uma convenção, ao menos como base comum de direitos válidos internamente. A Carta de Direitos dos Contribuintes dos países membros do ILADT, portanto, reveste-se de notável importância e certamente poderá oferecer subsídios aos projetos de reformas do nosso sistema tributário.

 


[1] http://www.iladt.org/frontend/docs/Carta_Derechos_Contribuyente_ILADT_aprobada_y_Presentacion.pdf

[2] Cf. https://www.conjur.com.br/2014-mar-05/direito-comparado-desenvolvimento-direito-comparado-seculos-xix-xx

[3] Cf. Torres, Heleno Taveira (coord.). Sistema tributário, legalidade e direito comparado: entre forma e substância. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 21-76.

[4] Cf. PLAZAS VEJA, Mauricio A. El sistema tributario en el siglo XXI. Bogotá: Temis, 2018, 160 p.

[5] Cf. Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 298, de 2011 – Complementar (denominado Código de Defesa do Contribuinte – CDC), com a Emenda nº 5-CAE aprovada em 12/12/2017.