Recentemente, foi editada a Medida Provisória nº 784/2017, que institui novo marco normativo para regular o sistema de infrações, penalidades, medidas coercitivas e meios alternativos de solução de controvérsias, além do rito processual a ser observado nos processos administrativos sancionadores, aplicáveis às instituições financeiras e equiparados pelo Banco Central (BACEN) e às companhias abertas ou outra entidade autorizada ou registrada na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Diante da sensibilidade destes setores estratégicos para a economia, é fundamental que a MP nº 784/2017 evite exceções indevidas ao modelo brasileiro de combate à corrupção, com máxima preservação dos valores que informam o devido processo legal, para proteção das partes e autoridades dos órgãos intervenientes, do interesse público, bem como segurança jurídica às instituições financeiras, empresas e pessoas envolvidas. A solidez, confiabilidade e credibilidade dos mercados financeiro e de capital reclamam equilíbrio, prudência e correção em todos os processos administrativos sancionadores.

Trata-se de medida que chega em boa hora, a reboque dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para integrar a legislação, como as medidas do Financial Sector Assessment Program (FSAP), do Acordo da Basiléia, dentre outros. Uma legislação antiquada e que há algum tempo estava a merecer reparos, como é o caso da Lei nº 4.595/1964 e da Lei nº 6.385/1976.

As mudanças limitam-se a questões sancionatórias, a mostrar que muito ainda deve ser feito no horizonte regulatório desses mercados. Isso porque somente mediante lei complementar (art. 192 da Constituição – CF) pode ser alterado o funcionamento ou a estrutura do sistema financeiro nacional e a organização do BACEN.

Tipificação de infrações e respectivas sanções ou mesmo regras de processo administrativo não são matérias reservadas a lei complementar, pois o art. 5º da CF exige apenas “lei” nestas hipóteses (XXXIX, XLVI, LIV, LV).

A MP nº 784/2017 corre severo risco de inconstitucionalidade caso incorpore matéria de “direito penal” ou de “processo penal”, que são vedadas para medidas provisórias, pelo art. 62, § 1º, I, “b” da CF, tal qual aqueles conteúdos de lei complementar. Impõe-se limitar seu objeto aos ilícitos puníveis pelo processo administrativo sancionador, sem alcançar tipos de natureza criminal, ainda que em muitos casos essa diferenciação seja sobremodo tênue.

Ademais, não andou bem a MP nº 784/2017 ao estabelecer hipóteses de “análise de conveniência e oportunidade”, nos quais BACEN ou CVM poderiam suspender, em qualquer fase que preceda a tomada da decisão de primeira instância, o processo administrativo instaurado para a apuração de infração, se o investigado assinar “termo de compromisso”.

Ora, não oferecer ciência ao titular constitucional da ação penal (Art. 129), que é o ministério público, por meio de simples notificação, traria uma desnecessária desconfiança para o processo administrativo do BACEN ou CVM, com o que certamente seus agentes não teriam qualquer interesse.

Este regime de “meios alternativos de solução de controvérsias”, mediante a celebração do “termo de compromisso” (i) ou do “acordo de leniência” (ii), de fato, não pode se converter em “anistia”, como tábua de salvação para quem tenha cometido ilícitos penais. Em nenhum momento as autoridades envolvidas laboraram com semelhante propósito, mas mesmo assim vale a ressalva.

Sobre o dever de notificação, tem-se regra expressa no ordenamento, na Lei Complementar nº 105/2001, cujo art. 9º prescreve que quando o BACEN e a CVM verificarem a ocorrência de crime definido em lei como de ação pública, ou indícios da prática de tais crimes, informarão ao Ministério Público, juntando à comunicação os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos.

Em conclusão, caberá ao Congresso Nacional o necessário aprimoramento da MP nº 784/2017, para que suas disposições possam atender às especificidades dos mercados financeiro e de capital, a proteger sua credibilidade e confiabilidade. Para tanto, deve colmatar as lacunas e propiciar ajustes na legislação em vigor, sem perder de vista o dever de combate à corrupção como uma prioridade permanente em nosso país.

Heleno Taveira Torres
Professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado.

 

Publicado originalmente em http://naoaceitocorrupcao.org.br/leniencia-e-ilicitos-nos-mercados-financeiro-e-de-capitais-heleno-taveira-torres/

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